quarta-feira, 31 de março de 2010

A ESSÊNCIA DE UMA ARTE MARCIAL -AIKIDO


O trem produzia um agudo som metálico, chacoalhando através dos subúrbios de Tóquio em uma sonolenta tarde de primavera. Nosso vagão estava relativamente vazio – algumas donas de casa com seus filhos, alguns idosos indo às compras. Fixei meu olhar nas monótonas casas e nas sebes empoeiradas.
Numa determinada estação, a porta se abriu e, de repente, a tranqüilidade da tarde foi destruída por um homem berrando violentamente incompreensíveis palavrões. O homem cambaleou para dentro de nosso vagão. Ele vestia roupas de operário; era grande, estava bêbado e sujo. Gritando, ele jogou-se bruscamente sobre uma mulher que carregava um bebê, fazendo com que ela caísse no colo de um casal idoso. Foi um milagre o bebê não ter se ferido.

Apavorado, o casal partiu na direção oposta, para o final do vagão. O operário mirou um chute nas costas de uma senhora idosa, mas não conseguiu atingi-la. Isso o deixou tão enfurecido que ele agarrou o cabo de metal do centro do vagão e tentou arrancá-lo de seu suporte. Eu pude notar que uma de suas mãos estava cortada e sangrando. O trem seguiu com os passageiros paralisados de medo. Eu permaneci em pé.

Na época eu era jovem, aproximadamente 20 anos atrás, e gozava de boa forma física. Eu mantinha constantes oito horas de treino em Aikido quase todos os dias, nos últimos 3 anos. Gostava de me lançar e lutar; eu me achava “durão”. O problema era que minhas habilidades marciais não haviam sido testadas em um real combate. Como estudante de Aikido, não nos era permitido lutar. “Aikido”, meu professor dizia incansavelmente, “é a arte da reconciliação com o Universo. Se você tentar dominar as pessoas, você já está vencido. Nós estudávamos com resolver conflito, e não como iniciá-los”.Eu ouvi essas palavras e realmente me esforçava. Cheguei a escolher um caminho mais logo para atravessar uma rua de forma a evitar os fliperamas com “punks” que se estendiam à volta das estações de trem. Meu autocontrole se elevava. Eu me sentia forte e abençoado. Em meu coração, entretanto, eu queria uma legítima oportunidade de salvar inocentes através da destruição de culpados.

“É isto!”, eu disse a mim mesmo. “Pessoas estão em perigo. Se não fizer algo rapidamente, alguém provavelmente sairá ferido”.

Vendo-me em pé, o bêbado visualizou sua chance de descarregar seu ódio. “Ah!”, ele gritou. “Um estrangeiro. Você precisa de uma lição sobre os hábitos Japoneses!”Apoiei-me levemente a uma laça suspensa do vagão e dei a ele um olhar de nojo e desprezo. Eu planejei tirá-lo de ação, mas ele havia feito o primeiro movimento. Eu o queria enfurecido, assim eu franzi meus lábios e joguei-lhe um insolente beijo. “Ok”, ele gritou. “Você vai aprender uma lição.” Ele ajeitou-se para uma investida em minha direção.


Um instante antes que ele pudesse se mover, alguém gritou. “Ei!”. O clima se rompeu. Eu recordo a estranha alegria e leveza desse momento – como se você e um amigo estivessem estado buscando insistentemente por alguma coisa e, de repente dessem de cara com ela. “Ei!”.Eu girei para minha esquerda, o bêbado girou para a sua direita. Ambos demos de cara com um pequeno senhor japonês. Ele deveria já estar na faixa dos setenta anos de idade, esse pequeno senhor, sentado ali imaculadamente em seu kimono. Ele não me notou, mas sorriu com prazer para o operário, com se ele fosse muito importante, o mais bem-vindo a compartilhar um segredo.“Venha cá”, disse o velho, acenando para o bêbado. “Venha e converse comigo”. Ele moveu sua mão levemente.

O grande homem o seguiu, como se estivesse atado a uma corda. Ele firmou seu pé agressivamente em frente ao velho e urrou acima do som das rodas. “Por que diabos devo falar com você?” ele perguntou, com os olhos brilhando de interesse. “Eu tenho bebido saquê”, o bêbado respondeu aos gritos, “e não é de sua conta!” Pingos de saliva saltavam.

“Oh, isto é maravilhoso”, disse o velho, “absolutamente maravilhoso!”. Sabe, eu também adoro saquê. Toda a noite, eu e minha esposa aquecemos uma pequena garrafa de saquê, levávamos para o jardim e sentamos em um velho banco de madeira. Nós observamos o sol se por e olhamos como nossa laranjeira está indo. Meu bisavô plantou aquela árvore, e nos preocupamos se ela se recuperará da chuva de granizo que tivemos no último inverno. Nossa árvore tem se saído melhor do que esperávamos, principalmente considerando o tipo de pobre solo. É gratificante observá-la enquanto tomamos nosso saquê e desfrutamos a noite – mesmo quando chove!”. Ele olhou para o operário, olhos brilhando.

Enquanto o bêbado se esforçava para acompanhar a conversa do outro, sua face se suavizava. Seus punhos vagarosamente cederam. “É, ele disse, “eu adoro laranjeiras também...” Sua voz balbuciou.“Sim”, o velho disse sorrindo. “Estou certo de que você tem uma esposa maravilhosa”.“Não”, respondeu o operário. “Minha esposa morreu”. Muito delicadamente, mexendo-se com o movimento do trem, o grande homem começou a soluçar. “Eu não tenho esposa, eu não tenho um lar, eu não tenho um emprego. Eu estou envergonhado.” Lágrimas rolavam por suas faces, um espasmo de desespero correu pelo seu corpo.

Agora era minha vez. Parado ali em minha bem-sustentada inocência juvenil, com o meu “torne esse mundo seguro pela democracia e com justiça”, de repente senti-me mais sujo do que ele.

Então o trem chegou à minha estação. As portas se abriram e eu pude ouvir o velho dizer solidariamente:

“Pois é, pois é, este realmente é um problema difícil. Sente-se aqui e conte-me a respeito.”

Virei minha cabeça para uma última olhada. O operário estava esparramado no assento, sua cabeça no colo do velho, que, levemente acariciava o sujo e embaraçado cabelo do operário.

Como o trem deu partida, sentei-me num banco da estação. O que eu quis fazer com os músculos havia sido realizado com palavras gentis. Eu tinha acabado de ver o Aikido em combate e a essência disso era o amor. Eu poderia ter praticado a arte com um espírito totalmente diferente. Levaria ainda muito tempo antes que eu pudesse falar sobre resolução de conflitos.

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Por Terry Dobson tradução de Roberta Provatti(Originalmente publicado em CONTEXTO no 4. Outono 1983. Paágina 35 Copyright 1983. 1997 pelo Context Institut)

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